O Projeto Eternity é um conto distópico onde a vacina da imortalidade promete revolucionar o mundo. Venham ler!
Projeto Eternity
- “Conseguimos doutor!
Finalmente concluímos o projeto Eternity.” Exclamou a Doutora Helen ainda meio
incrédula a olhar pelo microscópio.
Uma explosão de felicidade ecoou pelo laboratório, não podia acreditar,
tínhamos acabado de curar…a própria morte. Bastava uma dose do nosso soro e
nunca mais ninguém morreria de causas naturais ou doenças.
Mas esta felicidade escondia uma contraindicação sombria. Quem fosse injetado
com o soro nunca mais poderia ter filhos, tornava-se infértil. Tentamos
reverter este efeito colateral indesejado, mas era impossível.
- “Anime-se doutor! Acabamos de curar a morte.” Diziam-me aos saltos.
- “Ainda nem parece real.”
Do laboratório seguimos para o restaurante mais caro da cidade, estávamos a
planear este dia há meses. Eram quatro da manhã quando o sono começou a cortar
a nossa euforia, finalmente ia poder dormir sem estar a pensar em fórmulas e
processos alternativos.
- “Tenha cuidado a ir para casa doutor, afinal tem um prémio Nobel para
ganhar.” Sorri para a minha assistente Helen Smith que cambaleava para o Uber
com os saltos na mão, já um pouco alterada do álcool.
Tive um dia livre antes da minha reunião com o primeiro-ministro e devo
dizer-vos que passar o dia em casa a ver televisão nunca foi tão satisfatório. Ainda
assim, depois da euforia e do orgulho, enquanto descomprimia, algo em mim
estava inquieto, parecia existir uma segunda linha de consciência que me dizia
para ter cuidado.
Escolhi a roupa cuidadosamente, afinal não é todos os dias que nos reunimos com
o homem mais poderoso do país para discutir os próximos passos no antídoto da
morte. Para um homem habituado a passar o dia de bata branca num laboratório,
vestir um fato completo com uma gravata a apertar o pescoço não era nada
agradável, mas a ocasião assim o impunha. Não podia reunir-me com o
primeiro-ministro de bata e discutir os termos do contrato que o advogado do
nosso laboratório tinha elaborado com base nas minhas preocupações éticas. Era
fundamental, a meu ver, assegurar que a nossa descoberta seria utilizada para o
bem da humanidade. Depois do sofrimento do meu pai com o cancro no pulmão, a
tristeza da nossa família que quase nos afundou, jurei fazer o possível e o
impossível para reverter a dor excruciante da morte. Não pensava noutra coisa
enquanto estudava física e química que nem um louco. Tinha que ser o melhor e
assim aconteceu.
Fui escoltado pelos seguranças do edifício até ao escritório do
primeiro-ministro onde nos deixaram a sós. Havia um ambiente solene devido à
segurança apertada do palacete que me incomodava quase tanto como o nó da
gravata.
- “Devo dizer Bernard nunca pensei que isto fosse possível.” Disse o
primeiro-ministro deixando escapar entusiasmo atrás da sua cortina de
burocracia.
Antes mesmo de ler o contrato que eu lhe tinha apresentado logo após as
formalidades de boas-vindas e a sessão fotográfica com a imprensa,
passou-me um cheque com mais zeros do que alguma vez tinha visto “Caro Bernard,
devo agradecer-lhe, em nome do executivo que dirijo e em nome da humanidade, o
trabalho que levou a cabo ao longo dos últimos cinco anos.” via-se que tinha
ensaiado o discurso e algo soava falso, ainda que eu não tivesse razões de
queixa do governo. Tinham sempre cumprido com as promessas. Assinou o contrato
sem hesitações, como se os meus princípios e a ética do projeto não passassem
de mais uma burocracia e afirmou com um ar mais duro, enquanto olhava bem
dentro dos meus olhos “Agora meu caro, os nossos cientistas vão iniciar os
testes nos primeiros voluntários, idosos, como estava combinado e depois estudaremos
a melhor maneira de divulgar a extensão desta descoberta às populações.”
Senti-me mal a aceitar o dinheiro, afinal o que fiz foi dar o presente da vida
eterna à humanidade, algo que era procurado desde o início dos tempos.
- “Está ciente dos efeitos secundários senhor?”
- “Sim, a minha equipa pôs-me a par. Nada é perfeito, mas os voluntários
saberão julgar o que melhor lhes serve."
Saído do escritório fui direto para o aeroporto. Tinha bilhete para as
maldivas, depois de cinco anos enfiado num laboratório merecia umas férias e o
dinheiro não era preocupação, nem num milhão de anos conseguiria gastar aquela
quantia absurda.
Estava numa espreguiçadeira com uma vista maravilhosa e uma água de coco na
mão, ainda assim não conseguia largar o telemóvel, as notícias do projeto
começavam a surgir. Foi um pandemónio, a televisão não falava de outra coisa e
a opinião publica parecia dividida, uns achavam que imortalidade era a melhor
coisa que nos podia acontecer, outros eram mais conservadores e diziam que o
ser humano não se devia fazer passar por deus ou que a contraindicação era
demasiado cruel. Nada disto me surpreendeu, afinal esta era a maior descoberta
na história da humanidade.
Os primeiro injetados foram idosos com mais de noventa anos, em lares de
terceira idade. O sucesso foi tremendo, minutos depois de levarem o soro
viram-se livres de doenças e de todas as suas dores, não só iam viver
eternamente, como iam ter uma vida livre de qualquer sofrimento físico.
Mesmo ao ver todo este sucesso e toda a felicidade que o tratamento estava a
proporcionar, existiam muitos críticos ao projeto e passo a citar a manchete de
um dos jornais “Projeto Eternity vai arruinar lares e hospitais.” Fiquei
perplexo e dividido. Por um lado, parecia-me um argumento baseado na ganância,
mas não deixava de ser verdade que o declínio gradual das doenças e do
envelhecimento acabaria por levar à ruina milhares de hospitais e lares de
terceira idade pelo mundo inteiro, empurrando para o desemprego milhões de
pessoas.
De volta a casa, ainda indignado com a natureza humana e revoltado com a
divisão que a cura eterna estava a causar, deparei-me com uma série de chamadas
perdidas da doutora Smith no meu telemóvel de trabalho que havia deixado para
trás.
Retribui-lhe as chamadas, estaria tudo bem?
- “Viste as notícias?” Perguntou apressada.
- “Quais delas?”
- “Código Pandora, está a acontecer!”
- “Código Pandora?” Perguntei aterrorizado.
- “Apareceram pessoas na China, India e Africa a dizer que foram injetadas
contra a sua vontade.”
- “Quais as suas idades?”
- “Segundo dizem dos vinte aos quarenta.”
Desliguei imediatamente, estavam a retirar a escolha das pessoas, era suposto
injetar quem se candidatasse, isto era desumano, podia desencadear motins,
talvez uma guerra.
Liguei para o primeiro-ministro umas dez vezes sem qualquer resposta. Peguei no
carro e fui até ao palácio, os seguranças não me deixaram entrar porque não
tinha uma reunião marcada, ameacei-os com um escândalo, estava a um passo de
ligar aos jornalistas que me tinham entrevistado várias vezes ao longo dos
anos. Podia estar fora do projeto “Eternity”, mas ainda era uma figura publica
com muitos contactos na imprensa. Deixaram-me passar.
O primeiro-ministro mantinha o seu ar impávido e perguntou-me, com uma
admiração forçada:
- “O que o traz aqui Bernard?”
- “O que julga que está a fazer?” Gritei-lhe.
- “Acalma-se se faz favor??”
- “Acalmo-me? O que está a fazer é inumano, imoral! O projeto Eternity devia
ser uma bênção, trazer felicidade.”
- “Não percebo aonde quer chegar meu caro?”
- “Não se faça de desentendido. Sei das injeções contra a vontade dos sujeitos.
Já não estamos a falar de voluntários senhor primeiro-ministro, estamos a falar
de uma clara violação ao livre-arbítrio do ser humano, onde estão os nossos
princípios, a democracia? se não o conhecesse diria que vivemos numa ditadura.”
- “Estamos a fazer-lhes um favor Bernard, a fazer um favor ao mundo.”
- “Como é que isso é um favor?”
- “Como é que uma das mentes mais brilhantes do mundo não entende? Atualmente
somos dez biliões, já deve ter feito as contas, se a população mundial
continuar a crescer a este ritmo, será impossível alimentar o mundo, acabaremos
por esgotar os recursos, o planeta e quando isso acontecer, a humanidade acaba,
meu caro e isto não vai acontecer daqui a cem anos, falo num prazo de cinco
anos.”
- “Teremos outras soluções, outros recursos, não lhe cabe a si decidir pelos
cidadãos se querem ou não viver para sempre.”
- “Engana-se doutor. A partir de agora o projeto Eternity é obrigatório.”
- “Obrigatório?”
- “Sim, toda a população do planeta deverá tomar o soro que você criou, devia
sentir-se orgulhoso.”
- “Não pode fazer isso!”
- “Posso e vou. As rondas negociais com os líderes mundiais já ocorreram e a
decisão foi unânime, para variar. Estamos todos de acordo e o processo está em
andamento.”
- “Isto não vai resolver nada, com a vacina vamos continuar a ser dez biliões e
vamos viver eternamente.”
- “Não é bem assim doutor e você sabe. O soro impede a morte por causas
naturais, não impede acidentes, assassinatos nem suicídios.”
- “Então o seu plano é impedir a reprodução e assassinar uma parte da
população, estamos a falar de um massacre?” Perguntei incrédulo e horrorizado.
- “Para grandes males, tem que haver coragem política para soluções um pouco
mais radicais, Bernard e você forneceu-nos a solução perfeita.”
- “Essa solução só vai adiar a nossa extinção, não vai evitá-la.”
- “Veremos Bernard. A fertilidade não vai acabar, será agora uma opção muita
cara. Os mais ricos poderão ter filhos e as mentes brilhantes como o meu caro
amigo também terão acesso a esse privilégio.”
Saí sem palavras, a cura da humanidade estava prestes a tornar-se na sua
destruição e tudo tinha começado com a minha investigação. A minha obsessão em
manter-nos eternos ia destruir o mundo. Era uma dor insuportável. Uma angústia
permanente.
Bateram-me à porta.
- “Doutora Smith?” Agarrou-me pelo braço e começou a arrastar-me até ao seu
carro.
- “Onde vamos?”
Já dentro do carro ajeitou o espelho antes de começar a chorar a apertar o
volante com as unhas que tinha acabado de fazer.
- “Isto está a correr terrivelmente mal doutor…eles estão a começar a vacinar
toda a gente.”
- “Sim…já soube.” Disse desiludido sem qualquer solução para lhe apresentar.
- “A taxa de suicídio e de homicídios já é a maior de toda a história, a
população está a descer exponencialmente.”
Instalou-se o silêncio.
- “Eles…eles injetaram-me…”
- “Isso significa que…”
- “Sim.” Dei-lhe um abraço, sabia o quanto ela queria ter filhos. Um abraço não
a ia ajudar, mas era a única coisa que podia fazer.
- “Agora que finalmente tinha uma vida boa, que tenho dinheiro, não acredito
que isto me está a acontecer.” Desatou a chorar no meu ombro.
Ela levou-me até ao nosso antigo laboratório que era numa zona subterrânea no
meio de um descampado.
- “Temos de arranjar um antidoto, se não o fizermos não sei o que irá
acontecer…” Irónico, íamos ter de criar um antidoto para a imortalidade, se
contasse isto a alguém há uns anos atrás ninguém iria acreditar.
Ligamos a pequena televisão que estava na parede, o noticiário seguia as mortes
ao minuto, com as guerras civis os suicídios e os assassinatos já só eramos
oito biliões e meio, estávamos a cair a um ritmo assustador.
Passaram-se semanas e não estávamos mais perto de um antidoto, agora eramos
sete biliões, gerou-se o caos, as pilhagens, as populações em desespero ficavam
loucas, aos poucos os canais de televisão deixaram de emitir, sabíamos as
noticias por canais de rádio e segundo os estudos que iam aparecendo cerca de
noventa por cento da população já tinha sido vacinada.
As semanas, os meses seguintes forma mais do mesmo, sem qualquer progresso e
com a população a descer a um nível nunca antes visto.
A Helen corria de um lado para o outro, já não dormia há dias. Parei-a numa das
suas corridas de balcão para balcão.
- “Acabou Helen. Passou quase um ano e não conseguimos fazer nada. Segundo os
meus cálculos temos um mês antes da extinção, acredito que sobrarão poucos
humanos e sem recursos, a nossa raça acabará por desaparecer .”
- “Não…não pode ser… n-nós íamos salvar o mundo!” Gritou em desespero.
Ela tinha razão, nós deveríamos ter salvo a humanidade, e teríamos conseguido
se ainda existisse humanidade dentro de nós, mas ela perdeu-se há anos, não
passávamos de uma raça egoísta e gananciosa, merecíamos o que nos estava a
acontecer.
Felizmente, o laboratório tinha uma sala adjacente cheia de comida para
podermos passar alguns meses, confortavelmente, sem guerra, sem massacres e sem
fome, só com o remorso a consumir-nos.
A única coisa que me trouxe um pingo de felicidade foi descobrir que o
primeiro-ministro tinha sido brutalmente assassinado por uma multidão enfurecida,
ele que tinha ignorado o nosso contrato e enganado o mundo inteiro, teve um final adequado. Estava feliz com a
morte de um ser humano, talvez eu fizesse parte do problema, talvez não fosse
melhor do que os políticos corruptos e os senhores da guerra, talvez as minhas
boas intenções não passassem de uma desculpa para me armar em deus, para me
sentir superior. Tinha um nó gigantesco na cabeça, sentia uma vertigem.
Tentei hackear satélites para descobrir quantos ainda eramos, mas a
internet estava em baixo.
Não havia maneira de saber quantos eramos, mas não devíamos ser mais de um
milhão, já não existiam guerras, agora a maioria das pessoas matava-se com o
desgosto de não poder criar uma família ou por pressentirem o final dos tempos,
eu seguia a deixa destes últimos e sem contar há Helen criei um soro indolor,
suicida.
Desesperados e sem saber o que acontecia no mundo lá fora, senti que tinha
chegado a hora.
- “Acabou.” Disse ao tirar as pipetas com o soro do bolso.
- “O que é isto?” Perguntou a Helen que se tinha deteriorado muito, tanto
mental como fisicamente, não a censurava.
- “Isto vai fazer tudo passar.”
- “Então…é mesmo o fim?”
- “A culpa é nossa.” Disse, enquanto aproximávamos as seringas do braço.
- “Então é assim que acaba a humanidade, sempre pensei que fosse por causa de
um vulcão.” Disse a tremer.
- “Não te preocupes Helen, não vamos deixar saudades.” Afinal o maior inimigo
da Humanidade sempre foi o pensamento racional. O pensamento levou-nos à ilusão
de que poderíamos ser deuses. Mas não somos, bem pelo contrário.
Dei um último suspiro pensando como o dinheiro a política e a religião
conseguiram destruir um milagre tão grande como a imortalidade. Com isso na
minha mente acabei orgulhosamente com a nossa espécie falhada.
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