O homem que lia mentes - E se um dia acordasses e pudesses ler mentes? É exatamente isto que acontece neste conto - Vem ler!
O homem que lia mentes
I
Cansado, foi assim que cheguei a casa. Aliás era assim que
chegava a casa todos os dias.
Estava a chover. Deixei os sapatos à porta do apartamento. Não vês que assim
patinhas o chão? Ouvi a voz da minha mulher na minha cabeça.
Na empresa onde trabalhava circulavam rumores de que ia haver um despedimento.
Estava toda a gente com os nervos em franja, aquilo parecia uma selva.
Respostas tortas e farpas voavam entre as trincheiras e os soldados em
competição feroz começavam a ficar até cada vez mais tarde para mostrar
serviço.
Atirei-me para o confiável sofá cinzento e suspirei de alívio ainda que no dia
seguinte tivesse de repetir o processo novamente.
Olhei por cima da ilha para o relógio que estava na parede da cozinha. Semicerrei
os olhos para focar a visão. Já eram oito da noite, isto estava a tornar-se
impossível.
Liguei a televisão.
Estava a dar um jogo de futebol. Devia ser para a taça. Pelas riscas verdes e
brancas nas camisolas pareceu-me o Sporting que era o meu clube. Digo “era”
porque há muito tempo que tinha deixado de ver futebol. Para mim perdeu a
graça, já não era um desporto, era negócio.
Quando jogadores são apanhados a apostar dinheiro na equipa adversária, está
tudo dito. O dinheiro corrompe o homem. Às vezes chego a pensar que isto só pode
melhorar se vivêssemos como os homens das cavernas, lá se iam os stresses, as
internets, a poluição, tudo. O problema era o serviço nacional de saúde.
Dava-te uma dor nos dentes e acabava-se logo tudo.
Mudei de canal.
Ainda tive a curiosidade de ver o resultado, mas fui forte, não o fiz.
Um batuque ritmado subia as escadas. Conhecia bem este batuque, eram os saltos
da minha mulher a subir as escadas.
Ela era modelo. Quem é que estou a enganar, ela era chamada de vez em quando
para umas sessões fotográficas para ganhar uns trocos.
É claro que não lhe dizia isto. “Apoiava-a” completamente, ainda que em certos
meses desejasse que arranjasse um trabalho fixo para ajudar a pagar as contas,
enfim.
Abriu a porta.
Vi-a num vestido verde, sorridente, também já sem sapatos.
Em anos anteriores tinha corrido na sua direção, tinha-a abraçado com saudades.
Há meses tinha-lhe sorrido de volta. Hoje acenei e continuei a olhar para a
televisão.
- “Estás mesmo feliz de me ver.”
- “Estou cansado, só isso.”
- “Eu também estou cansada e não me vês assim de trombas.”
Deves estar muito cansada a pousar para fotografias por duas horas, pensei.
Discutíamos por tudo e por nada, pensei que isto só fosse acontecer quando
tivéssemos sessentas, não trintas. Talvez o casamento fosse assim, mas ainda
estávamos bem, certo? Sim, sim, sem dúvida.
- “Já começaste a fazer o jantar?”
Claro que não comecei a fazer o jantar. Acabei de chegar e aliás tive a
trabalhar o dia todo, tu só saíste há duas ou três horas, não me digas que
ainda queres que faça o jantar? E não estou a ser machista, já estou farto de
ouvir essas merdas, só estou a ser justo.
- “Não.” – Levei a mão à testa esperando o vendaval que se aproximava.
- “Foda-se, tenho de ser eu a fazer tudo!”
- “Desculpa, o que disseste?!” – Levantei-me como se me tivessem ligado a uma
corrente de energia.
Ela pareceu atrapalhada.
- “O-o quê? Eu não disse nada.” – Respondeu confusa com as mãos anormalmente
pequenas no ar.
- “Estás a gozar comigo? Eu ouvi-te perfeitamente.”
- “Ouviste perfeitamente o quê? Eu nem falei!” – Elevou o tom de voz deixando
uma veia saliente no seu pescoço. Aquela veia também ficava saliente quando
fazíamos o amor, fiquei com sentimentos contraditórios.
- “Foda-se, tenho de ser eu a fazer tudo! Ouvi-te bem.”
Ela deu um passo atrás. – “Eu tenho a certeza que não disse isso. Só…só
pensei.”
- “As tuas desculpas estão a ficar criativas. Mas sabes que pensar já é mau o
suficiente.”
- “Como é que ele ouviu?”
- “Ó Sónia, estou a ouvir-te com os ouvidos porra.”
- “Outra vez!” – Disse chocada.
- “Olha, estás a brincar comigo? Não estou com paciência.”
- “Eu não disse aquilo, só pensei, tu leste-me os pensamentos.”
Virei-lhe costas e dei uma volta ao sofá para me acalmar. Achava que com este
jogo ia esquecer o que ela disse?
- “A sério Tiago, anda aqui.”
Voltei até ele desimpressionado.
- “Olha para os meus lábios. Eu não vou falar.”
Foquei os olhos nos seus lábios por razões diferentes das que gostaria.
- “Consegues ouvir-me Tiago?”
Ela não mexeu um músculo e eu… eu ouvia-a na mesma, que raio se estava a
passar?
- “Vês, tu ouviste-me, não ouviste?”
- “S-sim” – Respondi ainda sem saber o que pensar.
- “Tiago… acabaste de ler a minha mente.”
II
- “Isto é fantástico!” – Disse ela.
- “Vamos ficar ricos!” – Pensou gananciosamente.
Posso dizer-vos que não foi o que aconteceu. Ler mentes é mais inútil do que
pensei, preferia ter um poder que me permitisse prever o número do Euromilhões,
dava muito mais jeito.
Porra, preferia ser normal! Preferia não estar sempre a ouvir vozes, por favor
só quero que elas parem!
Eu sabia sempre a verdade. Sabia que em momentos a minha mulher pensava em
deixar-me, pensava noutros homens.
- “Lá vai aquele gajo sempre cabisbaixo.” – Pensavam os meus colegas de
trabalho.
Haviam de ser vocês a ouvir a verdade cruel a cada momento a ver se gostavam!
Durante uns anos zangava-me com quem pensava mal de mim, isolei-me muito. Tinha
zangas com a Sónia com ainda mais regularidade. Um dia algo mudou pararam as
discussões, as zangas, tudo. Lia as pessoas há tanto tempo que as mentiras
tornaram-se num amigo para mim. Afinal eu também minto, se a minha mulher me
lesse a mente talvez já me tivesse deixado, se os meus colegas o fizessem
odiavam-me com uma paixão ardente, portanto o que importa?
Se todos disséssemos sempre a verdade o mundo acabava, a sociedade colapsava,
assim eu sou o único que vou sendo destruído aos poucos.
Ontem ouvi o meu chefe a pensar enquanto andava nervosamente para o seu
escritório. Tentava não cruzar o olhar com ninguém. Iria haver outro processo
de despedimento. Não nos conseguia olhar nos olhos sabendo que daqui a umas
semanas nos poderia estar a dizer que íamos sair, que íamos deixar de fornecer
para a nossa família.
Não estava pronto para mais umas semanas de sufoco constante, não sei se ia
aguentar isto, foi isso que partilhei com a Sónia.
- “Tem calma, aconteça o que acontecer eu vou continuar aqui para ti.” –
Reconfortou-me passando-me a mão suavemente no ombro.
Estava a dizer a verdade.
- “Olha, e se amanhã fossemos à praia desanuviar? Ouvi dizer que vai estar
calor.”
Aceitei.
Quando era miúdo não gostava muito da praia, não havia nada para fazer. Era
filho único, ir para a água sozinho tornava-se aborrecido e os castelos de
areia eram apenas mansões enormes para um príncipe solitário.
Limitava a deitar-me na toalha a contar os segundos para que voltássemos para
casa.
Agora estar deitado na toalha, a ser gentilmente beijado pelo sol enquanto as
ondas cantavam parecia uma dádiva, percebia porque os meus pais o faziam.
Ainda não era época balnear, a praia estava quase vazia e ainda bem, não queria
ouvir as vozes.
A minha mulher viu um homem esculturado a passar, ficou excitada. Não me
incomodou, sabia bem que o meu corpo deixara de ser apetecível há muito tempo.
Duvido que tivessem paciência para ir ao ginásio na minha posição.
Vi umas crianças a construir um castelo de areia.
Devia ser giro ter irmãos, pensei.
- “O que achas do meu castelo?” – Perguntou o rapaz à irmã.
- “Está feio.” – Respondeu descaradamente.
O irmão chateado procedeu a destruir o castelo da irmã que começou a chorar até
que a mãe decidiu intervir, ainda que estivesse a pensar que a filha é uma
chorona e que às vezes merece o que lhe acontece.
Fiquei impressionado com as crianças, enquanto elas falaram não ouvi vozes.
Lembrei-me depois da minha infância. Nessa altura eu também não mentia, não
tinha filtro, quando será que comecei a açucarar a verdade? Quando achei que a
realidade era demasiado cruel para ser contada?
- “Para onde estás a olhar?”
A Sónia que se estava a bronzear de barriga para baixou agarrou-se agora a mim
carinhosamente. Ainda conseguia sentir a sua pele quente.
Sabia que estava a olhar para os miúdos e questionou-se se seria também hora de
criarmos os nossos.
Apesar de todas as mentiras que contávamos um ao outro continuávamos juntos e
felizes dentro do possível. Posso dizer-vos que todos os casais que conheci
eram assim.
- “Acho que já sabes para onde estou a olhar.” – Respondi depois de lhe ler o
pensamento.
- “Às vezes também gostava de ler mentes para saber no que estavas a pensar.”
- “Não, não ias gostar.”
Acredita.
Muito bom. Excelente dinâmica, fugindo dos lugares-comuns e do óbvio. Um final diferente para um homem que não personifica a figura típica do super-herói, mesmo possuindo um super poder
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